Para o cientista político, moeda única com diferentes políticas monetárias é um dos estopins da crise.
O cientista político José Luís Fiori, da UFRJ, afirma que as medidas que a União Europeia vem adotando contra a crise financeira que assola o continente têm o mesmo efeito de “jogar gasolina na fogueira”.
A crise no continente tem levado países a altos níveis de desemprego, como a Espanha, onde 20% da população economicamente ativa não têm uma ocupação. Em entrevista ao Brasil de Fato, Fiori comenta a situação atual do maior bloco de países do mundo e as origens históricas dos problemas apresentados. Confira entrevista abaixo.
Brasil de Fato - A previsão de que o dólar poderia vir a ser substituído gradativamente pelo euro nas reservas de países como a China, tende a cair por terra com o cenário econômico da UE?
José Luís Fiori - Acho que não há nem nunca houve esta possibilidade de substituição. Durante o período em que a “moeda internacional” teve uma base metálica, a libra e o dólar também tiveram uma restrição financeira intransponível, imposta pela necessidade de equilíbrio do balanço de pagamentos do país emissor da moeda de referência. Mas depois do fim do Sistema de Bretton Woods, em 1973, esta restrição desapareceu, com o novo sistema monetário internacional “dólar-flexível” que não tem nenhum tipo de padrão metálico de referência. Neste sentido, se pode dizer que houve uma nova “revolução financeira”- na década de 1980 -, que provocou uma espécie de retorno às origens da relação entre o poder, a moeda e o crédito.
Hoje, os EUA definem, de forma soberana e isolada, o valor da sua moeda e dos seus títulos da dívida pública, e com isto também definem indiretamente o valor das demais moedas. E o que é importante entender é que neste novo contexto, a moeda americana está lastreada exclusivamente pelo poder americano, político, militar e financeiro. Trata-se de um estado e de um tesouro nacional que emitem a moeda e os títulos que aparecem de um lado ou do outro do “balcão” em cerca de 70% das operações feitas dentro da economia mundial. Frente a isto, a fragilidade política e militar de Europa desautoriza qualquer expectativa de que o Euro possa substituir o dólar, dentro deste mesmo sistema monetário internacional vigente, desde a crise de 1973.
Na visão do senhor, há um problema de "nascença" no Euro, que seria o causador dessa instabilidade? Qual seria essa "falha genética"?
O nascimento do sistema monetário europeu começou com o Tratado de Maastricht, de 1992, e culminou com a criação do Euro, em 2002. Todo o processo de criação, inclusive do BCE, foi baseado na suposição dos dirigentes europeus de que esta nova moeda supranacional conduziria à criação de um poder central capaz de geri-la. Apesar de que todos eles soubessem que as moedas europeias foram sempre emitidas e lastreadas pelos seus príncipes e pelos seus estados capazes de garantir o seu valor e a sua circulação com base na sua capacidade de tributação e de endividamento.
No caso do Euro, entretanto, se trata, de uma moeda emitida – como já disse noutro lugar - por um Banco Central “metafísico”, que não pertence a nenhum Estado, nem administra a dívida de nenhum Tesouro Central. É por isto que também digo que o euro tem uma “falha de nascimento”, e que funcionou até hoje, como uma moeda semi-privada, sendo aceita por causa da crença privada e da certeza publica de que o BCE, e a Alemanha, cobririam todas as dívidas emitidas pelos 16 estados membros da “eurozona”. Como de fato ocorreu até 2008. Mas esta situação mudou depois do colapso financeiro de 2008, quando a primeira-ministra alemã, Ângela Merkel, estabeleceu o novo princípio de que cada país europeu teria que ser responsável – a partir daquele momento - pelos seus próprios bancos, e pela cobertura de suas dividas soberanas. A consequência imediata da nova posição alemã foi a crise de insolvência de alguns governos da Europa Central, no ano de 2009, contornada pela intervenção do FMI.
No início de 2010, entretanto, a denuncia do novo governo socialista da Grécia, de que o déficit orçamentário grego do ano anterior, havia sido maior do que havia sido publicado inicialmente, serviu como estopim de uma nova crise, que foi magnificada pelo veto alemão – durante seis meses - a qualquer tipo de ajuda comunitárias ao governo grego. Até o momento em que a situação da Grécia ameaçou se estender a outros países endividados e acabou atingindo a própria “credibilidade” do euro, obrigando a Alemanha a aceitar a aprovação apressada de um Fundo Europeu de Estabilização Financeira, com capacidade anual de mobilização de até 750 bilhões de euros. Valor suficiente para contornar a crise imediata, mas incapaz de reverter a desmoralização do próprio sistema monetário criado em 2002.
Essa crise vivenciada na União Europeia é uma continuidade da de 2008, ou ela tem sua origem na própria União Europeia?
Existe um parentesco indiscutível entre a crise europeia de 2010 e a crise americana de 2008, mas é importante destacar que esta nova crise que começou pela Grécia tem uma natureza específica e diferente. A crise de 2008, foi uma crise financeira imobiliária que se estendeu a todo o sistema bancário, atingindo finalmente a própria atividade produtiva devido à contração creditícia, sobretudo nos EUA e na Europa. Foi uma crise americana que se alastrou pelo mundo de forma diferenciada, através das portas abertas pela desregulação dos mercados financeiros e pela globalização do sistema monetário “dólar flexível”, que se consolidou mundialmente depois da crise do Sistema de Bretton Woods de 1973.
Mas , esta crise financeira não provocou uma crise de insolvência da moeda e dos títulos públicos norte-americanos. Pelo contrário, durante a crise houve uma “fuga para a segurança” dos grandes investidores internacionais, na direção do dólar e dos Títulos da Dívida emitidos pelo governo americano, títulos que atuam como uma espécie de base não metálica do próprio dólar. Já no caso da crise europeia de 2010, o que está no centro dos acontecimentos, do meu ponto de vista, é uma crise monetária, uma crise de insolvência ou “credibilidade’ privada e publica do próprio euro.
O protagonismo da Alemanha na UE pode ameaçar o princípio de paridade entre os países, que deveria nortear o bloco?
O projeto de unificação europeia foi concebido originalmente, no início dos anos 50, em grande medida, para incluir e desmilitarizar a Alemanha, e para conter a União Soviética, sob a batuta franco-americana. Mas depois de 1991, este projeto virou de ponta cabeça, com a reunificação da Alemanha e o fim da URSS. A partir daí, a Alemanha se aproximou da nova Rússia, e estendeu sua influencia a toda a Europa Central, alargando sua liderança econômica dentro da UE. Por isto, quando a primeira-ministra Ângela Merkel foi eleita, em 2005, pôde montar um governo de “união nacional” com os social-democratas, fortalecendo o governo e o estado alemão, para seu trabalho contínuo e silencioso em favor da aprovação da nova Constituição europeia, o Tratado de Lisboa, e pelo controle político de todos os novos estados que se associaram à UE. Mais recentemente, o governo de Merkel se desfez da aliança com os social-democratas e assumiu com os liberais a liderança das posições ortodoxas, dentro da Europa, transformando-se numa referencia mundial, na luta contra o intervencionismo estatal e contra qualquer tipo de ativismo do Banco Central Europeu. Mas depois de 2008, e em particular, desde a crise de 2010, a Alemanha parece que está assumindo uma posição cada vez mais egoísta e autônoma com relação à França e aos demais membros da União Europeia. E todos os sinais indicam que a Alemanha vem se comportando, no campo econômico como no campo político e diplomático, orientada exclusivamente pelos seus interesses nacionais, tendo abandonado sua posição tradicional de solidariedade com o resto da Europa. Não é por acaso que pesquisas recentes indicam que muitos empresários e banqueiros europeus já estão achando que não é impossível que a própria Alemanha abandone o Euro. Por trás de tudo isto, entretanto, existe de fato um problema e um impasse que é fundamentalmente político. A partir de um certo momento do processo de unificação, a União Europeia ficou inviável sem um poder centralizado capaz de definir objetivos e prioridades, e distribuir recursos. Mas seus principais estados impedem este processo de centralização, porque, no fundo, a Europa está cada vez mais dividida, entre os projetos estratégicos de seus três principais sócios, a França, a Alemanha e a Inglaterra. Depois do fim da Guerra Fria e da reunificação da Alemanha, a Alemanha se transformou na maior potência demográfica e econômica do continente, e passou a ter uma política externa independente, centrada nos seus próprios interesses nacionais, que incluem o fortalecimento dos seus laços econômicos e financeiros com a Europa Central, e com a Rússia. Este comportamento alemão acentuou o declínio da França, que tem cada vez menos importância internacional, e favoreceu o fortalecimento do “euroceticismo” britânico, reacendendo a competição e a luta hegemônica dentro da União Europeia, e trazendo de volta velhas fraturas e divisões que estiveram presentes, em suas infindáveis guerras seculares. e impor objetivos e prioridades estratégicas, aos seus estados-membros. Uma situação agravada pela sua submissão militar aos EUA, que impôs a expansão apressada da UE, em direção ao leste, para “ocupar” os estados que haviam pertencido ao Pacto de Varsóvia, e haviam estado sob controle soviético, até 1991. Como consequência, a União Europeia se transformou num “ente político” fraco, com uma moeda falsamente “forte”, e com muito pouca capacidade de iniciativa autônoma, dentro do sistema mundial.
Com os pacotes econômicos baseados em perdas de direitos e ajustes fiscais nos países mais afetados, o senhor acredita que este processo de crise pode significar o fim definitivo do Estado de Bem Estar Social?
Não acredito em fins definitivos, nem do capitalismo, nem do estado, nem das políticas de bem estar. Mas como estas novas políticas de austeridade impostas pela Alemanha a todos os países da eurozona estão sendo aplicadas em economias que já estão estagnadas e com altas taxas de desemprego, é como se eles estivessem colocando gasolina na fogueira e apostando numa profunda e prolongada recessão, como fizeram os EUA no início da crise da década de 1930. E o pior é que a própria Alemanha está se auto-aplicando as mesmas políticas de ajuste, o que empurra o conjunto da União Europeia numa direção auto-destrutiva.
José Luís Fiori é cientista político e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)