Vítima de constantes e desastradas intervenções militares externas, país do “chifre africano” afunda em ciclo de fome e violência de proporções inéditas
Conflito envolve diversas forças e interesses
O RPG, abreviação em inglês de lançador de granadas em foguetes (rocket-propelled grenade), é semelhante a uma bazuca. Colocando-o no ombro, o atirador dispara um foguete explosivo não muito preciso, mas capaz de perfurar blindagens e causar enorme dano.
Foi com um desses que, em 1993, em meio a um dos inúmeros combates da guerra civil que dividiu a Somália a partir de 1991, um helicóptero dos Estados Unidos foi derrubado em Mogadíscio, a capital do país. O episódio ficou famoso ao inspirar o filme “Falcão Negro em Perigo” (Black Hawk Down), de 2001.
Hoje, 19 anos depois, a guerra civil ainda não terminou e o uso de RPGs e metralhadoras em áreas urbanas virou uma constante diretamente relacionada ao altíssimo número de mortes de civis nos combates.
Neste ao, no entanto, não há estimativa. Entre 10 e 12 de março, por exemplo, foram recolhidos mais de 80 corpos das ruas da capital. De acordo com analistas internacionais e integrantes de grupos de ajuda humanitária que atuam há anos na Somália, a situação nunca foi tão crítica.
Fugas em massa
O agravamento dos conflitos vem provocando fugas em massa de somalianos tentando sobreviver. Só em março, mês marcado por batalhas violentas, 270 mil deixaram a região de Mogadíscio, fazendo com que o número de deslocados internos passasse de 1,5 milhão – o equivalente à população de uma cidade do tamanho de Recife (PE). “Alguns foram hospedados por amigos ou parentes, mas muitos simplesmente não têm condições de fugir para áreas mais seguras. A situação é alarmante. Já empobrecidos por anos de conflitos e expulsos de casa, eles estão rapidamente ficando sem meios de sobrevivência”, resume a porta-voz do Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), Melissa Fleming.
Aos desabrigados internos, que vagam pelo país fugindo das áreas mais caóticas, somam-se mais de 560 mil refugiados que buscaram abrigo em campos superlotados na Etiópia, Quênia, Djibuti e Eritréia, países vizinhos.
Fome
Além da violência, a fome é uma constante e atinge principalmente mulheres e crianças. A estimativa do Programa de Alimentação da Organização das Nações Unidas é de que 2,5 milhões de pessoas dependam do envio de comida, o equivalente à população de uma cidade do tamanho de Brasília (DF).
Destes, 625 mil vivem em regiões em que a distribuição foi interrompida em janeiro. A ONU suspendeu a atuação no sul e em partes da região central alegando não haver o mínimo de segurança e ser impossível atender as exigências dos grupos que controlam a área.
Ao mesmo tempo em que a distribuição de alimentos vem sendo comprometida, a própria organização se vê tendo que dar explicações após denúncias do Grupo de Monitoramento da ONU de desvios de alimentos e corrupção. Pessoas contratadas pelo Programa de Alimentação teriam participado inclusive de comércio de armas.
Uma em cada seis crianças somalianas sofre de desnutrição. Na região que deixou de ser atendida, a média sobe para uma em cada cinco crianças.
Armamento pesado
Apesar da crise humanitária gravíssima em curso na Somália, as agências internacionais de notícias dão mais atenção à pirataria no golfo de Aden do que às mortes constantes de civis. A instabilidade no país afeta o principal eixo de ligação entre o mar Mediterrâneo, que banha a Europa e é caminho para o Atlântico Norte, e o oceano Índico, rota para a Ásia e para o golfo Pérsico e suas reservas de petróleo.
De acordo com a Organização Marítima Internacional, por ano, cerca de 22 mil cargueiros atravessam o golfo de Aden, passando pelo canal de Suez, no Egito, que liga o Mediterrâneo ao mar Vermelho. Tal movimentação representa aproximadamente 8% do comércio mundial e inclui mais de 12% do petróleo transportado por via marítima no mundo.
A Somália, com três mil quilômetros de costa (veja mapa nesta página), tem posição estratégica no principal eixo de ligação da importante rota de escoamento de boa parte do petróleo que abastece os países do Norte e numa das principais rotas de acesso aos mercados da Índia e China, países com um constante crescimento do nível de consumo de suas populações que, somadas, chegam a 2,5 bilhões de pessoas.
Posição estratégica
Portanto, mais do que as reservas de petróleo e gás ainda não exploradas que o país possui, é a posição estratégica no chamado Chifre da África que atrai a cobiça internacional. Não é à toa que os Estados Unidos mantêm, há anos, uma política agressiva na região.
Especialistas apontam que o caos atual é resultado direto das intervenções constantes e desastradas, ao longo dos anos, de governos poderosos, muitas apresentadas como “missões de paz” ou “intervenções humanitárias”.
“A Somália virou um tabuleiro de xadrez com diferentes grupos sendo usados por países que têm diferentes interesses. Eles armam facções rivais e prolongam a anarquia e a guerra civil”, explica o analista somaliano Ismail Adan Mohamed, que hoje vive em Dubai, nos Emirados Árabes. “Os Estados Unidos têm apoiado o governo transitório, que é fraco e obscuro. As armas que fornecem são vendidas abertamente nos mercados de armas de Mogadíscio e abastecerá a guerra civil e o sofrimento por mais anos e anos”, denuncia.
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