domingo, 24 de maio de 2009

Entenda os conflitos pela terra no Pará



Pescado do Brasil de Fato.

O panorama dos conflitos no Pará



Violência de milícias privadas, morosidade na realização da reforma agrária, favorecimento da elite latifundiária, criminalização e manipulação dos grandes meios de comunicação e complacência do poder público com a violência. Todos esses clássicos e tristes elementos da luta pela reforma agrária no país estiveram presentes nos últimos capítulos da tentativa de massacre de acampados do MST no Pará. No dia 18 de abril, oito trabalhadores foram pegos em uma emboscada por milícias armadas da fazenda Espírito Santo, pertencente à empresa Agropecuária Santa Bárbara que, por sua vez, pertence ao grupo Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas. Dois foram gravemente feridos, mas passam bem.

O MST denuncia que há quatro anos o grupo vem comprando terras griladas. Em entrevista, Charles Trocate, integrante da coordenação nacional do movimento, no Pará, comenta a disputa de interesses no Estado: de um lado, o projeto popular, que defende a reforma agrária e a soberania sobre os recursos naturais. De outro, a exploração – nada sustentável – desses recursos por grandes grupos econômicos.

Trocate também comenta a recente tentativa de massacre, vendida pela imprensa corporativa como uma ação provocada pelos sem-terra. A versão foi desmentida pelo próprio repórter da TV Liberal, afiliada da TV Globo no Estado, Victor Haor. Ele prestou depoimento à polícia dia 27 de abril e negou que os jornalistas tenham sido usados como escudo humano ou mantidos reféns pelos trabalhadores, desmentindo a própria empresa para quem trabalha.

Quando e por que o MST começou a ocupar as fazendas do grupo Santa Bárbara?

Nos últimos quatro anos, a agropecuária Santa Bárbara comprou aproximadamente 800 mil hectares de terras. São 52 fazendas em 11 municípios do sul e sudeste do Pará, onde criam meio milhão de cabeças de gado; dizem eles que é o maior projeto de criação de gado do mundo. O problema é que essas terras são públicas, portanto, foram griladas; o verdadeiro dono é o Estado do Pará, quando não a União. Aí há dois fatores: primeiro que, independentemente de ser ligada ao Daniel Dantas ou não, é latifúndio e é da natureza do MST fazer enfrentamento ao latifúndio. Segundo, houve nesses quatro anos uma reconcentração fundiária e da exploração dos recursos naturais. E já está provado que o modelo econômico baseado na mineração e na grande fazenda é incapaz de resolver os problemas sociais que a região vive. Logo, nossa postura foi começar um grande mutirão de ocupações dessas terras, em especial da agropecuária Santa Bárbara, pois simboliza a concentração fundiária, além de que são terras reconhecidamente públicas. Esse mutirão começou pela fazenda Maria Bonita, a 22 quilômetros do município de Eldorado de Carajás, em julho do ano passado; no dia 28 de fevereiro de 2009 ocupamos a fazenda Espírito Santo e no dia 1º de março ocupamos a fazenda Cedro, todas pertencentes ao Dantas.

Em relação ao episódio da jornada de abril, na fazenda Espírito Santo, o que de fato aconteceu?

Desde a ocupação da fazenda Maria Bonita, em 25 de julho de 2008, tivemos três reuniões com o Instituto de Terras do Pará [Iterpa] e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária [Incra]. Pedimos as vistorias, mas todas as tentativas que o MST e esses órgãos fizeram não foram aceitas pelo grupo Santa Bárbara, portanto, continua esse impasse. Por meio de seus advogados a empresa agropecuária vem afirmando que vai até o fim para tirar os trabalhadores dos acampamentos, “dentro dos limites do Estado de Direito”, dizem.

O agravante foi uma reunião, no dia 6 de abril, em Marabá [PA], convocada pela subcomissão mista de agricultura, presidida pela senadora e presidente da Confederação Nacional da Agricultura [CNA] Kátia Abreu [DEM-TO] e com a presença de parlamentares, como o deputado estadual Asdrúbal Bentes [PMDB], Giovani Queiróz [PDT-PA] e o senador Flexa Ribeiro [PSDB-PA]. Eles criticaram a morosidade do Estado em cumprir as liminares de reintegração de posse e, evocando a violência de classe, afirmaram que, se elas não fossem agilizadas, os fazendeiros e proprietários deveriam se armar, constituir milícias e desocupar pela força as fazendas e que eles fariam a defesa dos fazendeiros.

Mais de 500 grandes fazendeiros da região estiveram nessa reunião. No dia 18 de abril, começaram a executar esse plano e para isso construíram uma grande cilada. Então, isso faz parte da filosofia que está se estruturando no sul e sudeste do Pará: eles reivindicam a força policial do Estado para o despejo e, diante da negativa, colocam em marcha uma ofensiva armada.

De janeiro para cá, foram 21 ocupações coordenadas pelo MST, Federação dos Trabalhadores da Agricultura [Fetagri] e Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar [Fetraf] e outros grupos espontâneos [os posseiros]. Isso ocorre porque a grave crise social, econômica e ambiental que vive a região não se resolve nem com o modelo agrário baseado no latifúndio e nem o modelo mineral da Vale. A única saída é a reforma agrária. Do nosso ponto de vista, há uma tendência de agudização da tensão social, pois de um lado está a defesa de um modelo que inviabiliza a sociedade e, do outro lado, os trabalhadores que buscam outras saídas.

E como se deu o ataque das milícias?

Na jornada de abril, decidimos concentrar forças em duas atividades. Uma na “curva do S” [onde ocorreu o Massacre de Eldorado do Carajás] e outra na capital. Em momento algum decidimos ocupar latifúndios ou sedes de fazendas. Nossa avaliação é que havia uma pretensão por parte da Santa Bárbara, uma espécie de plano para criar um fato que pressionasse o Estado a fazer o despejo. Isso porque a juíza de Marabá declarou que pediria a reintegração de posse, mas que não havia nenhuma excepcionalidade no caso e que havia uma fila de outras 43 reintegrações para fazer antes.

Então, eles tentaram criar uma situação em que a única saída fosse o despejo das famílias. Dessa forma, o plano foi bem montado: alugaram um avião em Belém, em nome do grupo Santa Bárbara, convocaram os jornalistas da região e desceram na pista da própria fazenda. Ali emboscaram os trabalhadores, que recuaram. Um deles, porém, ficou nas mãos dos seguranças da fazenda. Os outros foram pedir ajuda aos acampamentos vizinhos e decidiram ir buscar o trabalhador que estava preso pelos seguranças. Foi aí que houve o ataque.

Houve, então, uma tentativa de massacre? Como está o estado de saúde dos sem terra atingidos?

Nossa constatação é que as milícias e jagunços tinham ordem de executar um massacre. Quando os trabalhadores se deram conta que os seguranças estavam com armamento pesado e atirando, recuaram e oito ainda se feriram, dois ficaram em estado grave. Um companheiro levou um tiro na barriga que perfurou o pulmão e o baço; uma outra bala ficou alojada no coração. Passou por cirurgia e está se recuperando. Outro companheiro, de aproximadamente 60 anos, levou dois tiros na boca, um na barriga, um na coxa e outro na canela. Também já está se recuperando. Os outros foram atingidos por estilhaços e passam bem, estão em seus acampamentos e assentamentos já.

No depoimento que deu a polícia, o jornalista da afiliada da TV Globo desmentiu a versão dada pela própria emissora. Como você avalia a cobertura da grande imprensa sobre o ocorrido?

O discurso da imprensa – a TV Liberal, Diário do Pará e outros –, a partir desse fato, é de que os trabalhadores teriam provocado o conflito e colocado sob cárcere privado todos os jornalistas. Agora, porém, já está claro que houve uma tentativa de criminalizar, com apoio da grande imprensa, o acampamento e o MST. O depoimento do jornalista mostra que foi produzido um fato que não existiu para criminalizar o MST a nível nacional, tirando a credibilidade da ação dos trabalhadores.

Mais uma vez fica clara a tentativa de criminalização, pela grande imprensa, das nossas ações, para desqualificar a própria reivindicação da reforma agrária. Foi a empresa de segurança que manteve três trabalhadores em cárcere privado. Tivemos que fazer uma retirada do local para que mais trabalhadores não fossem atingidos pela chuva de balas, como íamos manter jornalistas, gerente e seguranças presos? É uma grande mentira nacionalizada pelos meios de comunicação para provocar uma reação contrária aos apoiadores da reforma agrária.

O Pará é o Estado com maior índice de violência do país. Como isso se relaciona com o modelo de desenvolvimento adotado para a região?

O Pará é um Estado de barbárie social. Dos 7 milhões de habitantes, 4 vivem abaixo da linha da pobreza. Como se explica que uma área tão rica em recursos naturais possa produzir uma desigualdade dessas? Isso explica a natureza do conflito. Hoje, o modelo de desenvolvimento econômico lá atua em uma grandes frentes. A da agropecuária, que utiliza a terra para criação de gado. Há o triplo de cabeça de gado em relação ao número de habitantes. Há a frente da madeira, responsável por boa parte dos desmatamentos; a frente mineral, que gera uma massa de trabalhadores atingidos por projetos nessa área, desalojando trabalhadores assentados, indígenas e quilombolas. Há ainda a frente da biodiversidade, com os que se apropriam das riquezas natureza da floresta.

A natureza do conflito está na escolha desse modelo que utiliza fortemente os recursos naturais da região para uma elite e em detrimento do povo e dos trabalhadores da região. E sempre que os trabalhadores reagem, a resposta é a violência, seja pelo uso da repressão do Estado por meio da ação policial – há dois dias [esta entrevista foi concedida em 28 de abril] foram presos 18 militantes que ocuparam o canteiro de obra da hidrelétrica de Tucuruí –, seja pela cooptação dos movimentos e suas lideranças, destituindo a pauta de reivindicação dos trabalhadores, ou ainda – a mais perigosa – com a eliminação física dos militantes e dirigentes desses movimentos. A reação do capital é essa e está colocada na conjuntura da região.

Nos últimos 30 anos, foram assassinados 832 trabalhadores no campo paraense. Há uma verdadeira guerra civil no Estado em que só uma parte tem perdido e tem sido os trabalhadores. O Estado não produziu nenhuma condenação satisfatória desses assassinatos. Há uma cultura da violência e um apelo à violência de classe como meio de manutenção dos interesses do grande capital e da burguesia agrária e conservadora da região.

Qual projeto alternativo do MST e outros movimentos do campo para a região?

Exercer soberania popular sobre os recursos da região. Aí está o epicentro da disputa. Essas riquezas devem servir aos interesses do povo. Mas para isso temos que combater três elementos que estão articulados: primeiro, o imperialismo ambiental, que expolia os recursos naturais. A segunda tarefa é desalienar a sociedade que está cooptada e embrutecida por esse modelo de desenvolvimento. Terceiro: nos próprios movimentos, desmistificar a ideologia do desenvolvimento auto-sustentável que, na prática, dá tudo às transnacionais, e para a sociedade local prega o uso controlado e regulado. Em contrapartida, propomos usar os recursos naturais da região a favor dos interesses do povo. Esse modelo não viabiliza a sociedade, mas apenas o lucro e o capitalismo. Queremos construir uma plataforma em que o povo seja guardião da floresta, da terra e da biodiversidade. Essa é nossa luta na região, ainda que tenhamos que enfrentar a violência.

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