quinta-feira, 25 de março de 2010

Entrevista com Carlos Latuff


Esta charge sensacional é do artista brasileiro Carlos Latuff, que faz arte engajada; apoia a Revolução Cubana e defende a Causa Palestina.
Seu posicionamento o fez ser ameaçado até pela direita israelense.

Socializo com vocês uma entrevista dele de 2006, dada ao Fazendo Média.

O sobrenome Latuff é tão característico que esse despojado artista, por vezes, nem se lembra que seu primeiro nome é Carlos. O traço dinâmico e carregado de crítica também define sua identidade. Na página israelense ligada ao Likud, partido israelita de direita, ele foi definido como disseminador de uma ideologia genocida, que envia mísseis de ódio por meio de seus cartuns. É tratado como um homem altamente perigoso, tudo isso por questionar a opressão contra palestinos. Um ativista de 37 anos, sorridente e corajoso, defensor ferrenho dos direitos humanos. Sem maiores molduras, Latuff é um cartunista. É anticapitalista.
Leia abaixo a entrevista concedida a Gilka Resende e Raquel Junia para o Fazendo Media.

Você pode falar um pouco sobre sua militância e sobre sua rotina de criação?
 
Comecei na imprensa sindical em 1990, mas não por uma questão de militância. Foi por falta de espaço para trabalhar. Eu tinha saído de uma agência de propaganda em 1989 e batia nas portas procurando lugar para trabalhar. Naquela época eu não tinha nenhuma preocupação ideológica, trabalharia para quem me pagasse, só que como eu não tinha panela nem padrinho, não tinha acesso à grande mídia. Então eu ia batendo em sindicato, em associação, em federação, até que descobri esse filão do movimento sindical e comecei a trabalhar em 1990. Em 1996, depois de um documentário que vi na televisão sobre os zapatistas, eu me solidarizei com aquela luta, simpatizei com a causa e achei que poderia apoiá-la produzindo imagens que pudessem ser utilizadas não só por eles, mas pela base de apoio deles no mundo. Essa foi a primeira experiência que eu tive na produção de arte em apoio a uma causa. Hoje, tenho duas vertentes. Uma é o meu trabalho profissional, pelo qual recebo para desenhar. Esses são feitos para a imprensa sindical, em que os jornalistas me ligam e me explicam a pauta. Como faço isso há muito tempo, já sai na urina. Já o outro viés é o da militância. São temas como o do povo palestino, o iraquiano, os sem-terra, os sem-teto, para as rádios livres, para o Grito dos Excluídos, para a Telesul. Sempre que eu posso, eu colaboro com essas causas. Não cobro nada. Precisou, eu desenho.

Você teve retorno dos zapatistas?
 
O retorno deles mais interessante que tive foi quando convidaram dois membros da Frente Zapatista para falar na Uerj. Aí eu pensei: "Caraca! Tem zapatista na Uerj! Vou lá ver os caras! Aí eles estavam na Associação de Docentes da Uerj. Quando entrei na sala, estavam dois zapatistas, um deles era o Javier Elorriaga, ele estava fumando um cachimbo. Eu tinha levado algumas cópias de uns desenhos, aí falei assim: "com licença, eu sou Latuff...". O nome não bateu a princípio. Aí continuei falando: "eu apoio a causa de vocês...". Ele só balançava a cabeça e dizia: "Uhum...". Aí eu disse: "pois é, eu trouxe aqui uns desenhos que eu mando para vocês...". Quando ele olhou o desenho, ele arregalou os olhos e disse: "Você que é o Latuff!". Aí ele levantou, me abraçou...

Por que se identificou com a causa dos zapatistas?
 
Quando você tem um seguimento ou um povo inteiro sob opressão, ou vítima de injustiça, e quando esse povo resolve se levantar contra isso, é uma coisa que me é muito cara. Eu respeito muito essas manifestações de resistência popular e a identifiquei no movimento zapatista. Além de ser um movimento de resistência, o movimento zapatista tem uns elementos românticos que resgatam muito do que se perdeu, do que se entendia como a utopia socialista. Aquilo tudo em plena era da globalização, do muro que caiu, das pessoas dizendo que não havia mais as utopias, do Fukuyama dizendo que a história havia acabado, aí me aparece não em uma universidade, não em um local burguês, aparece um movimento no meio da selva Lancadona, em Chiapas, no sul do México. Então, aquilo me emocionou muito e pensei que a única maneira que eu tinha para apoiá-los daqui era produzindo arte. Aí a internet tornou possível que essas imagens não só chegassem a eles, mas às pessoas do mundo todo.

Você não concede entrevistas à grande imprensa e já declarou que nunca a sua arte poderia ser publicada na mídia corporativa. Gostaria que você falasse um pouco sobre isso.
 
Pois é. Eu tenho para mim que não dá para confiar na imprensa corporativa. Primeiro porque eu tive várias experiências decepcionantes. Aliás, eu vou substituir o termo grande imprensa por mídia corporativa, porque grande imprensa enche muito a bola deles. Normalmente, o artista é muito suscetível à mídia, ele tem um ego inflado e é muito fácil comprá-lo com holofote, entrevista... Eu vou citar dois exemplos de experiências que tive. Uma foi quando eu fiz um grafite sobre a violência policial na Cidade de Deus, naquele muro onde espancaram moradores, em 1997. A mídia inteira cobriu, apareceu no Jornal Nacional, na revista Caras... A mídia inteirinha cobriu aquela porra!

Qual era a mensagem do grafite?
 
"Violência policial não". O desenho mostrava um PM com um pedaço de pau para dar nas costas de um morador encostado na parede. Uma repórter do Aqui e Agora (programa policial do SBT) me entrevistou e depois eu fui ver na televisão a reportagem. Ela falou o seguinte na televisão: "o cartunista Latuff passou três dias e três noites sem dormir depois de ter visto as imagens de agressão policial na TV". Eu nunca havia dito isso, em momento algum! Ou seja, ela criou aquilo para causar sensação, eu não disse aquilo. A partir daí eu já comecei a pensar que tinha alguma coisa errada, mas tudo bem. Depois eu voltei a essa questão em 1999 quando fiz uma série de charges sobre a violência e corrupção policial. Aí o RJTV me ligou, e eu fiquei deslumbrado: "que legal, o RJTV quer falar comigo!" Ainda naquele deslumbramento idiota com a mídia. Aí me chamaram para dar entrevista lá dentro do Jardim Botânico. Me levaram para uma sala, me trataram muito bem, a jornalista fez perguntas pertinentes, foi tudo muito bom. Mas aí é que é a questão, o problema não é o jornalista, o jornalista pode ser muito legal, pode ser muito bacana, gente boníssima, mas tem um cara atrás dele que eu não vejo, que é o editor. Esse sujeito é que vai fuder com a minha vida. Porque eu posso até colocar o meu gravador junto do gravador da repórter, mas o problema vai ser qual é o contexto em que eles vão inserir aquilo que eu vou dizer, esse é o problema. E não tem como ter controle sobre isso. Então, quando eu voltei para casa, fui ver a matéria. Deram a parte que eu falei. Mas aí vem o contexto, assim que eu acabei de falar, eles entrevistaram um policial. E aí o policial falou: "com isso aqui ele está infringindo o artigo tal, tal, tal". Depois que ele acabou de dizer isso, veio um repórter falando mais sobre o artigo e o âncora fechou a matéria dizendo: "a pena para esse crime é de tanto a tantos anos de cadeia". Ou seja, mudou totalmente o enfoque, eu passei a ser um filho da puta, um criminoso. Qual era a mensagem para o telespectador? Meu amigo, você quer se manifestar da mesma maneira, veja o que pode acontecer, você pode ir para a cadeia! Ou seja, não dá para confiar nessa gente. Então, depois daquilo ali, eu pensei que realmente não dava mais para confiar, mas ainda assim não tinha caído a ficha. Um dia, já em dois mil e pouco, depois que eu participei de um evento midiático em São Paulo, a MTV veio me procurar. Eles iam lançar um programa chamado "Buzina MTV" com um tal de Cazé Peçanha. Aí novamente o meu olho brilhou: "ah, que legal, a MTV, eu vou aparecer no horário nobre!". O produtor do programa me ligou, eles iam estrear me entrevistando. Aí eu pensei: "puta, é do caralho!". Ele falou comigo no telefone e eu fiquei de dar uma resposta. Depois eu pensei o que é a MTV. A MTV é o carro-chefe da indústria fonográfica e cinematográfica internacional, isso aí não é nem a mídia corporativa, é o Grande Irmão! Porra, eu fazer o quê? Vou associar o meu trabalho a uma indústria? Vou transformar o meu trabalho em uma garrafa de coca-cola? Nos intervalos eles vão mostrar as curvas da Cicarelli, vão pedir para você comprar um All Star, beber coca-cola e ouvir MP3 player da Macintosh. Aí nesse momento é que veio a inspiração, o divino Espírito Santo, Deus me falou e eu falei para o produtor que não iria participar do programa por esses motivos. Então, desde aquele momento eu não dou mais entrevista para a grande imprensa.



Publicamos aqui no fazendomedia.com artigo com a ameaça contra você feita pelo partido israelense Likud. A ameaça foi feita na página eletrônica do partido?
 
Primeiro, uma coisa que precisa ser colocada claramente é que esse site não é o oficial do Likud, mas um site associado ao Likud. Então, o que é dito no site Likudnik, que foi onde publicaram esse artigo, corresponde ao pensamento do partido porque se não correspondesse não estaria lá.

Eles diziam que seus desenhos são anti-semitas. São?
 
Não. O que é ser anti-semita? Primeiro a gente tem que definir o que é anti-semitismo. Vocês sabem definir isso em uma palavra?

Ser anti-judeu?
 
É. Pois é, correto, anti-judeu. Ser anti-judeu significa ou atacar a religião, ou atacar a raça, ou seja, é uma questão objetiva ao povo judeu. Desde 1999, que foi quando eu viajei aos territórios ocupados, até os dias de hoje, nenhum dos meus cartuns ataca o judaísmo ou o povo judaico. Porque o meu interesse é em relação à ocupação dos territórios palestinos e ponto final. É isso! O meu interesse é esse, a minha discussão é essa. Qualquer outra discussão sobre judaísmo, sobre raça, não me diz respeito. A minha questão é o povo palestino. Aí você pode até dizer: "não, mas tem charges suas em que aparecem a Estrela de Davi e o Menorah, que são objetos da religião judaica". Correto. Só que esses objetos foram transformados em símbolos nacionais quando Israel foi fundada. A bandeira de Israel é a Estrela de Davi com duas barras azuis em cima e embaixo. A culpa não é minha se Israel, apesar de se dizer democracia, se parece com uma teocracia. Então, se eu quiser representar o Estado de Israel com um símbolo nacional eu vou utilizar um símbolo religioso por extensão. Se eu desenho, por exemplo, um avião de combate e coloco nele uma Estrela de Davi, eu não estou sendo anti-semita, não estou fazendo um ataque à religião, porque de fato os veículos militares de combate usam a Estrela de Davi. Então, sou anti-semita? Não. Porque o meu ponto não é o povo, a religião, as tradições, a minha questão é a opressão dos palestinos. Se essa pergunta fosse feita em outro contexto, de uma outra maneira, eu mandaria o jornalista tomar no cu, porque já era para terem entendido há muito tempo que a minha crítica tem a ver com a Palestina.

Essa é uma confusão que geralmente as pessoas fazem...
 
É. E os que defendem Israel promovem essa confusão, é proposital. É preciso associar toda a crítica ao Estado de Israel, ao anti-semitismo, ao racismo... Porque é uma maneira de desmoralizar o argumento.

Como você vê a relação entre Estados Unidos e Israel?
 
Israel é um satélite estadunidense no Oriente Médio. Então, evidentemente, eles endossam integralmente o que Israel fizer. Se Israel hoje jogar uma arma nuclear no Irã, os Estados Unidos já têm uma desculpa na manga para dar. Ontem um jornalista do Contraponto me perguntou: "ah, mas o que você acha do holocausto?". O caso do holocausto é um tabu, gerou-se em torno dele um tabu quase religioso, então você não pode discuti-lo, você pode discutir qualquer outro massacre em torno do mundo, mas não o holocausto. Mas essa para mim não é uma discussão mais importante. Não vejo nenhuma dificuldade em acreditar que existiu, o ser humano realmente é capaz de fazer essas atrocidades. Mas o que eu falei para o cara do Contraponto foi o seguinte: os mortos do holocausto estão mortos, eles se foram. A gente tem que se preocupar agora com os vivos, com os holocaustos que estão a caminho, em progresso, é com isso que a gente tem que se preocupar.

Quais são os atuais holocaustos?
 
Quando a África, por motivos econômicos, é impedida de ter acesso em larga escala a medicamento gratuito contra a Aids, isso para mim é um holocausto. Porque isso não é uma catástrofe da natureza, não é um tsunami, são motivos econômicos que impedem que aquelas pessoas sejam tratadas em larga escala. Inclusive, teve aquele filme, O Jardineiro Fiel, que fala sobre essa questão. Milhões de pessoas indo para o saco porque existem interesses corporativos por trás; isso para mim é o holocausto. Mas não é o holocausto de câmaras de gás, então chama menos atenção, e não é no Ocidente, é na África, ninguém se importa se morre um milhão de pessoas na África. 500 mil pessoas foram mortas a golpe de facão em Ruanda e não dão a mínima.


Você está correndo risco de vida?
 
Todo mundo que decide se levantar contra o establishment, seja aqui ou lá fora, corre risco de um jeito ou de outro. Esse risco pode ser a sua reputação, pode ser a sua vida, pode ser o seu trabalho, de um jeito ou de outro. Defender a Palestina tem sido realmente perigoso para muita gente, tem sido custoso, porque esse lobby pró-Israel se encontra em todo lugar. Eles usam dos expedientes mais sujos para difamar, para atacar, para derrubar seus argumentos. Mas eu dei a minha palavra para um palestino que conheci em Ebrom, seu Adris, eu sempre cito isso. O meu compromisso é com os palestinos, eu não estou preocupado com o que vai acontecer comigo. Pode vir um lunático, me encontrar na rua e me balear, porque aquele site, associado ao Likud, convocou as pessoas a tomarem medidas contra mim. O De Olho na Mídia disse que deveriam me processar. Processem! Seria muito boa essa discussão no tribunal, seria ótimo! Eu queria que eles me provassem no tribunal como é que o trabalho que eu faço é racista, por que ele é racista? Mas o interesse deles não é o tribunal, é o ataque moral, é desmoralizar. Eu realmente não estou preocupado com o que vai acontecer comigo. Estou com aquela tranqüilidade da Irmã Dorothy. Aliás, eu usei uma frase no meu MSN que era o seguinte: prefiro morrer como a irmã Dorothy do que viver como a Hebe Camargo. Então, se for para ser assassinado, que seja. Não vou mudar em nada a minha rotina, o que eu penso, o que eu faço, vou continuar defendendo, seja no tribunal, seja numa entrevista, sempre estarei defendendo o povo palestino. É mais fácil me matarem do que eu mudar de idéia. Agora, uma coisa que eu acho genial é que não faz diferença eu estar vivo ou morto. Porque os meus trabalhos estão espalhados pelo mundo inteiro, eles não dependem da minha existência.


É esse o poder da arte?
 
Os desenhos estão espalhados pelo mundo todo. Eles são vistos na Coréia do Sul, nos Estados Unidos, na América Latina, na Europa, no Mundo Árabe. Um jornalista do Cairo me falou: "Latuff, o seu desenho do Che Palestino está em todo lugar na Cisjordânia". Uma menina palestina que mora na Suécia me falou: "Latuff, eu estive na Palestina e vi uma coisa muito popular que eles vendem lá, uns chaveirinhos, com uns desenhos seus". Então, fudeu o barraco! Não há nada que os caras possam fazer. Eu já atingi o meu objetivo. Quando eu conheci o Seu Adris, em Ebrom, aquele palestino, eu falei para ele: "Prometo para o senhor, quando eu voltar para o Brasil eu vou fazer o que estiver ao meu alcance para defender a luta do povo palestino". Tudo o que eu queria hoje era encontrar com o Seu Adris e falar: "tá aqui, Seu Adris, eu não quebrei a minha promessa nem com o senhor, nem com o seu povo". Eu quero apoiar o mais fraco, eu quero apoiar a vítima, e quem é ocupado é vítima, não tem essa! Essa experiência do Likud foi muito interessante. A imprensa foi pautada pela imprensa alternativa. A Folha Online publicou a respeito disso, mas não porque eu dei entrevista, eu neguei entrevista tanto para a Folha Online quanto para O Globo Online. A Folha, inclusive, citou isso: "a Folha procurou o cartunista e recebeu um e-mail suscinto: 'não dou entrevista para a grande imprensa'". Publicou isso. Mas eles fizeram a matéria, como? Eles pegaram da Nova Economia, que é um blog da imprensa alternativa. A imprensa alternativa tem pautado a grande imprensa, muita gente está sabendo sobre esse incidente por conta da imprensa alternativa. Esse fato, além de ter sido divulgado pela imprensa sindical, a imprensa de esquerda, ele tem sido divulgado em sites de comunicação, de jornalismo, de quadrinhos, ou seja, esse assunto transcendeu a seara da esquerda, da militância, ele está chegando a quem lê quadrinhos.

Latuff, já chegando ao fim...
Nós estamos caminhando para o fim. Estamos mesmo.

Você aponta alguma solução?
 
A solução é o fim do capitalismo. Não existe outra possibilidade. Ou você trabalha pelo social, pelo ser humano, pela vida em comunhão, ou vai todo mundo para o saco. Não tem condição de todo mundo só consumir, consumir, consumir... Vai ter uma hora que o mundo não vai dar conta. A lógica capitalista é a grande responsável por isso, em que só o mercado importa. Em nome do capital, as pessoas matam. Em nome do capital, remédios são negados à população. Os direitos humanos são negados em nome do capital. Florestas são devastadas em nome do capital. Os rios são poluídos em nome do capital. Culturas são subjugadas em nome do capital. Enfim, fazem o que quiserem em nome do capital. Enquanto o capital falar mais alto que o social, o ser humano vai estar em risco. Enquanto o mercado dirigir a nossa vida, nós estaremos condenados. O problema é quando o mundo coloca o dinheiro acima de qualquer coisa. Isso é uma deformação!

Reproduzida de Fazendo Média

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