segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Maringoni: "FSM precisa 'discutir a relação' consigo mesmo"


Talvez falte ao Fórum uma amarração maior entre os vários temas e discussões. É possível que uma das soluções seja agrupar cada vez mais temas e seminários afins. Claro que a questão de fundo é política, entre uma visão particularista autonomista – própria das ONGs – e outra totalizante e mais contextualizada, própria das organizações políticas. Lilian Celiberti fez uma análise provocadora: "Acabamos de ter uma vitória significativa da direita no Chile, com a eleição de Sebastian Piñera. Se não atentarmos também para nossos fracassos, podemos deixar de fazer uma contribuição efetiva para nossas lutas”. A análise é de Gilberto Maringoni.

Gilberto Maringoni

Tudo o que ocorre nos eventos do Fórum Social Mundial é muito interessante. Debates seminais, como gostam de dizer os intelectuais, têm lugar em iniciativas oficiais e paralelas acontecidas no eixo Porto Alegre-Salvador. Não estão em pauta perfumarias e nem se trata de um a sequência de tertúlias e saraus inócuos. Não. São mesas redondas compostas por especialistas, que colocam em pauta temas como crise, racismo, guerra, questões de gênero, defesa da soberania, desenvolvimento etc.

Há sempre uma programação dita oficial e várias paralelas, que correm por conta de entidades, partidos e ONGs. São reuniões concorridas, como o debate “Diálogos e controvérsias”, na qual estiveram presentes o ministro Patrus Ananias, o governador da Bahia Jaques Wagner e outros membros do governo, e o lançamento da pré-candidatura à presidência da República de Plínio de Arruda Sampaio, pelo PSOL, ambas no ábado. “Hay de todo”, como falam nossos vizinhos latinoamericanos.

Caminhos das esquerdas
Na manhã deste domingo, aconteceu a mesa “A esquerda e as contribuições dos pensadores da América Latina e África”, com José Luis Del Roio (Itália), Lilian Celiberti (Uruguai), Cristophe Aguitton (França) e os brasileiros Waldyr Pires (ex-governador da Bahia), José Reinaldo Carvalho (PCdoB) e Franklin Oliveira Jr. Um tema importante, com sala lotada. Valeria um seminário maior, pois se a intenção era abarcar as várias correntes da esquerda continental, a mesa teria de convidar mais de vinte integrantes.

De certa forma, esta seria uma mesa para apontar “cenas do próximo capítulo”, no derradeiro dia do encontro baiano. Os convidados eram dos mais qualificados. Del Roio, ex-senador italiano pela Refundação Comunista e histórico dirigente da esquerda brasileira nos tempos da ditadura, recuperou autores hoje esquecidos, como o fundador do Partido Comunista Brasileiro, Astroildo Pereira (1890-1965), e mencionou a importância de se levar em conta o acúmulo teórico de José Carlos Mariátegui (1894-1930), fundador da Aliança Popular Revolucionária Andina (APRA), no Peru. José Reinaldo Carvalho, dirigente do PCdoB, seguiu pela mesma trilha, afirmando que os grandes desbravadores teóricos brasileiros não foram apenas aqueles ligados ao marxismo.

A lista deve se estender a contribuições como as de Celso Furtado (1920-2004) e Darcy Ribeiro (1922-1997). Cristophe Aguiton logrou sintetizar em 20 minutos uma questão crucial. “A idéia de progresso sempre esteve associado ao pensamento da esquerda. Todas as nossas análises baseiam-se na evolução histórica do feudalismo para o capitalismo e deste para o socialismo. Será que este etapismo ainda vale nos dias de hoje, após as ricas experiências e aos variados aportes teóricos que recebemos nas últimas décadas?” O ativista francês se refere à diversidade de sujeitos sociais percebidos após os anos 1950-60, com a emergência das lutas de independência nacional e as demandas afirmativas de segmentos como mulheres, negros, minorias sexuais etc. Aguiton não tem a resposta, mas foi o que mais se ateve ao tema do debate, buscando reconhecer em autores como o equatoriano Anibal Quijano contribuições novas à luta emancipatória em diversas partes do mundo.

Mas foi Lilian Celiberti quem literalmente lançou a análise mais provocativa. “Não podemos, num esforço de análise teórica, despolitizar nosso discurso. Acabamos de ter uma vitória significativa da direita no Chile, com a eleição do milionário Sebastian Piñera. Se não atentarmos não apenas para nossos avanços, mas também para nossos fracassos, podemos deixar de fazer uma contribuição efetiva para nossas lutas”.

Polêmicas
Como tantos outros, o debate foi acalorado. Um dos membros do plenário contestou vivamente Cristophe Aguiton por este ter incluído a teoria da dependência como uma contribuição teórica para a esquerda. “É uma formulação de Fernando Henrque Cardoso, que preconizava uma inserção subordinada do Brasil no mundo”, criticou o ativista. Aguiton replicou que há várias nuances em tal teoria e que existe uma visão de esquerda ali representada por Samir Amin, economista egípcio.

Tudo muito bom, todo bom demais. Mas o debate acaba e o que poderia ser um bom ponto de partida fica restrito a uma manhã quente de controvérsias num salão de hotel próximo ao farol da Barra.

Talvez falte ao Fórum uma amarração maior entre os vários temas e discussões fragmentados. Para usar mais uma expressão tão ao gosto dos intelectuais, esta mesa das esquerdas “dialoga” perfeitamente com o seminário “Crises e oportunidades”, realizado ao longo dos três dias do encontro de Salvador. É possível que uma das soluções seja agrupar cada vez mais temas e seminários afins. Claro que a questão de fundo é política, entre uma visão particularista autonomista – própria das ONGs – e outra totalizante e mais contextualizada, própria das organizações políticas. Algo precisa mudar.

O fato é que o auge das reuniões dos Fóruns Sociais Mundiais e seu maior impacto sobre a vida política de vários países parece ter acontecido entre 2004 e 2008. Superada a novidade de se abrir a pauta num tempo em que prevalecia a máxima de “não há alternativas”, o FSM precisa “discutir a relação” consigo mesmo. Se não, logo, logo se começará a dizer que “a forma-Fórum” está superada, a exemplo do que muitos dizem a respeito da “forma-partido” (que, aliás, está muito longe de ser ultrapassada).
  
Reproduzido de Carta Maior

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