Não foi surpresa a queda do Partido Trabalhista para um humilhante terceiro lugar nas pesquisas eleitorais inglesas. A incapacidade de Gordon Brown domar a crise, que atingiu a Inglaterra em cheio, pesou contra seu governo. Medidas tomadas nestes 13 anos dos trabalhistas no poder, como a participação destacada na guerra do Iraque, redução de salários (para aumentar a competitividade das exportações do país) e as leis anti-terror restritivas das liberdades, não pegaram bem num partido tradicionalmente associado à esquerda. Tudo isso culminando com a revelação de gastos escandalosos de parlamentares trabalhistas.
Como seria lógico, os conservadores aproveitaram-se da situação para se apresentar como a mudança que o povo britânico exigia.
Ninguém contava com a ascensão espetacular do Partido Liberal, mero coadjuvante da política inglesa desde o fim da 1ª. Grande Guerra, sempre bem atrás dos conservadores e trabalhistas que se revezaram no governo até hoje.
Ao noticiar a virada dos liberais que empataram com o Partido Conservador na liderança das pesquisas, a mídia brasileira ressaltou as qualidades pessoais do líder do PLD, Nick Clegg, comparando-o com Obama. Deu-se destaque ao seu carisma, juventude, facilidade de comunicação e à sua identificação com a “mudança”, tomando esta bandeira do Partido Conservador, na verdade, um partido do “establishment” que hoje pouco se diferencia do Partido Trabalhista.
É preciso, porém, considerar também a importância das idéias de Clegg no seu sucesso político. E aí a surpresa é talvez ainda maior.
A submissão à política externa dos Estados Unidos, especialmente a partir do fim da 2ª. Guerra Mundial, foi atacada de frente por Nick Clegg: “Cada vez que temos de tomar uma decisão, não temos escolha senão seguir as decisões tomadas na Casa Branca.” Ao contrário de seus concorrentes, ele quer que a Inglaterra passe a agir na área internacional conforme os seus interesses, não como um simples apêndice militar dos EUA.
Consubstanciando essa idéia, Clegg defende posturas concretas que contrariam os americanos em pontos fundamentais.
Foi contrário à invasão do Iraque, compartilhada por forças inglesas. Advoga uma postura imparcial no Oriente Médio, em lugar do apoio a Israel, adotado pelos governos trabalhistas de Tony Blair e Gordon Brown.
Antes do ataque a Gaza, em artigo no ‘The Guardian’, em janeiro de 2009, intitulado ‘Precisamos parar de armar Israel’, o líder liberal escreveu: “Brown precisa condenar sem ambigüidades as táticas de Israel como condenou os ataques de foguetes do Hamas”.
E mais adiante: “Ele (Gordon Brown) precisa liderar a Comunidade Européia para usar suas forças econômica e diplomática na região e mediar a paz. A Europa é de longe o maior mercado para exportação de Israel. Ela precisa suspender imediatamente o novo acordo de cooperação com Israel até que as coisas mudem em Gaza, apresentando condições firmes para assistência a longo prazo à comunidade palestina.”
Durante a guerra de Gaza, Clegg pronunciou-se assim: “Temos um presidente dos EUA de saída (Bush) sancionando a resposta militar israelense e um doloroso silêncio do presidente eleito (Obama). Temos uma União Européia comprometida por confusas mensagens... Gordon Brown, como Tony Blair, fez a política externa inglesa efetivamente subserviente a Washington. Apoio ao governo extremista de Israel não é nem do interesse da Inglaterra, nem do seu povo”.
Um ano depois da invasão de Gaza, quando a Europa e os EUA não condenavam o bloqueio de alimentos e materiais de construção pelo exército israelense, o líder liberal proclamava que “o confinamento e punição de toda uma população não é a forma de construir a paz para todo o povo do Oriente Médio”.
Nick Clegg foi mais além no trato de temas delicados para as relações EUA-Inglaterra. O manifesto de lançamento da sua candidatura diz que “queremos um completo inquérito judicial sobre a conivência do país nas torturas e nas ‘rendições extraordinárias’, nas quais suspeitos de terrorismo eram presos pela CIA no exterior e enviados a países para serem torturados secretamente”.
Lembro ainda mais outra posição liberal mal vista pela Casa Branca: Clegg é contra o Sistema de Misseis Trident, planejado ante a possibilidade de um ataque soviético. Para ele, já que a Guerra Fria acabou, não se deve manter o Trident a um custo de 120 bilhões de libras nos próximos 20 anos.
Mesmo arriscando perder votos de uma população fortemente anti-imigração, o líder liberal defende a anistia dos emigrantes ilegais há 10 anos no país, ao contrário das medidas duras propostas por seus adversários, inclusive os trabalhistas.
Coerente com as tradições liberais inglesas, ele quer ainda, através de uma “freedom bill” (lei da liberdade) restaurar a proteção às liberdades civis fraturadas pelas medidas anti-terrorismo do período Brown.
Por fim, o princípio aplicado aos bancos do “too big to fail” (muito grandes para falir), por receio das implicações na economia, fielmente respeitado por trabalhistas e conservadores, é repudiado por Nick Clegg. Ele garante que, se eleito, não impedirá a quebra de grandes bancos fraudadores.
O fato dos liberais ingleses estarem hoje à esquerda dos trabalhistas não quer dizer que eles tenham virado um partido esquerdista ou anti-americano. Seu programa de corte de despesas pode implicar em redução de benefícios sociais. E ele apóia tanto a guerra do Afeganistão (criticando sua condução) quanto sanções contra o programa atômico iraniano, embora excluindo ações militares.
Mesmo assim uma eventual vitória de Nick Clegg mudaria muita coisa, implicaria inclusive numa revolução inglesa na política externa, libertando o país da dependência a Washington.
No entanto, devido ao sistema de eleições inglês, com a divisão do país em 650 distritos, cada um elegendo um parlamentar, os liberais não têm chances, pois seus votos estão demasiadamente concentrados.
Certamente, nenhum dos dois grandes partidos elegerá um número de representantes que o capacitem a governar sozinho. A aliança com os liberais será inevitável, e assim terão influência no governo.
Que isso poderá implicar em alguma “mudança” na política externa inglesa é algo que não pode ser descartado.
Escrito por Luiz Eça no Correio da Cidadania
Escrito por Luiz Eça no Correio da Cidadania
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