segunda-feira, 12 de abril de 2010

8 anos do golpe frustrado contra Chávez

Reproduzo um artigo de 2007, escrito por Bob Fernandes, acerca da polêmica ''Chávez x RCTV".

Venezuela: mídia e RCTV, hoje e no golpe de 2002

Kim Bartley e Donnacha O'Brian são jovens irlandeses, na casa dos 30 anos. Documentaristas, entre o final de 2001 e 2002 passaram meio ano na Venezuela, a registrar Hugo Chávez, seu governo, o entorno, e a oposição.

Kim e Donnacha estavam no lugar certo na hora certa. Filmaram preciosos capítulos do pré, durante e pós golpe de estado de abril de 2002.

No domingo, 7 de abril de 2002, a dupla de irlandeses estava no Forte Guaicapuro, a uma hora de Caracas, onde Chávez foi gravar o programa dominical de televisão, estatal, "Alô Presidente".

No início da madrugada da segunda-feira 11 de março, exatamente um mês antes do golpe de estado, tive as primeiras de mais de 30 horas de conversas gravadas com Hugo Chávez ao longo dos últimos 6 anos. Estas primeiras, na Sala de Despachos, Palácio Miraflores, de onde o presidente governa.

No total, incluindo-se entrevistas com seus mais próximos, são mais de 50 horas gravadas, além de ter à disposição mais de 180 horas com depoimentos de todos os grandes envolvidos no golpe e no contragolpe, figuras do governo e da oposição: generais, ministros, coronéis, almirantes, jornalistas, empresários...


Nestes dias de junho de 2007 (veja aqui), em que tantos se esforçam para alimentar uma batalha midiática, política e diplomática entre Chávez e Lula, Brasil e Venezuela, vale recordar o papel de alguns dos mais importantes personagens do golpe de estado e do contragolpe.

Dramático o enredo, com fatos e diálogos que já são, ou virão a ser, parte da história.

Para que se entenda a Venezuela um pouco mais é inescapável recordar o que narram ao menos alguns dos seus livros de história: algo como um terço da população teria morrido na Guerra de Libertação - contra a Espanha - no ínício do século XIX. Portanto, de raízes profundas a virulência política generalizada.

No brevíssimo, embora interminável, espaço de 47 horas entre 11 e 13 de abril de 2002, o presidente eleito foi deposto e preso, em seu lugar assumiu o presidente da Federação das Indústrias, Pedro Carmona Estanga, para em seguida assistir-se ao retorno de Chávez - depois de Pedro tomar posse e imediatamente fechar o Congresso.

Antes, durante e depois do golpe e do contragolpe, uma instituição e seus personagens ocupou a ribalta, à frente dos eventos: a mídia, a imprensa. E seus proprietários.

A mídia, a imprensa, instituição que lá, como cá ou alhures, se faz de quarto poder quando tantas vezes é o primeiro, primeiríssimo.

Na Venezuela, naqueles dias, eram quatro os principais canais abertos do país: Venevision, de Gustavo Cisneros, Globovision, de Alberto Federico Ravel, Televen, de Victor Ferrer, e a agora célebre RCTV, de Marcel Granier.

Caros e caras internautas:

A partir deste parágrafo, seguem-se trechos esparsos de informações que constarão no livro que estou a dever à editora Ediouro.

Paulo Roberto Pires, o editor, embora já tenha passado os olhos por um primeiro e incipiente ensaio do livro, sabe quão árduo e estreito é o caminho entre os deveres do jornalismo e um personagem ciclópico como Hugo Chávez. Há de me conceder perdão, e mais algum tempo.

A MÍDIA NA MANHÃ DO GOLPE

Manhã da quinta-feira, 11 de abril de 2002. Meio milhão, setecentas, oitocentas mil pessoas... Os cálculos variam de acordo com os interesses do estatístico, e de resto são desnecessários.

A multidão reunida a Leste de Caracas, em frente à sede da poderosa PDVSA - a petroleira venezuelana - impressiona. Hugo Chávez, o presidente da República, está no palácio Miraflores.

Na avenida em frente ao palácio, a Urdaneta, não mais que 10 mil seguidores de Chávez, os chavistas. No ar a tensão que antecede as grandes batalhas.

A manifestação no parque vizinho à PDVSA reúne toda a oposição. Pedro Carmona Estanga, da Federação das Indústrias, Carlos Ortega, da Central dos Trabalhadores, os chefes dos partidos políticos, representantes da igreja católica, de todo o poder branco, criollo, de quase todo o grande dinheiro.

Os óculos, jeans, camisetas, celulares e penteados em simbiose com as Mercedes, Alfas, Hondas, Corollas e a miríade de SUVs, nesse ensolarado 11 de Abril

A Venezuela que adversa Chávez e tem algum poder está presente ou representada na manifestação, ápice de um processo de meses, e em dezenas de gigantescas marchas e protestos contra o governo.

A mídia se posicionou. Quase toda. Contra o governo.

Isso não é opinião. São os fatos. Basta ver algumas das manchetes inclusive do final da manhã, edições rodadas na hora, quentíssimas.

O El Universal anuncia em sua capa:

- Conflito Total.

No final da manhã o El Nacional lança uma edição extra.

Acima de três fotos que tomam toda a capa e registram a maré humana já nas ruas, o título, que espalha uma senha e imprime as digitais do diário na história: A batalha final será em Miraflores.

Nas emissoras privadas de rádio e televisão, nos intervalos das imagens e transmissões da Grande Marcha, repetem-se as chamadas da véspera:

- Cumpra seu dever...

- A Venezuela precisa de você.

-Traga sua bandeira;

-Marchemos todos unidos...

-A Venezuela não se rende...

As emissoras cobrem a Marcha e discursos ao vivo, sem interrupções para comerciais. De repente, a senha:

-...parece que a Marcha vai mudar o roteiro inicial... seguirá até a Avenida Bolívar e para o Palácio Miraflores, onde já não estaria o presidente Chávez....

Excitação em frente à sede da poderosa Petróleos de Venezuela.

PRENDA O PRESIDENTE.

Em seu programa dominical Alô Presidente, na Venezuelana de Televisão, o canal 8 do Estado, com um apito na boca como se fosse um árbitro de beisebol ou futebol e depois de nominar um a um, no dia 8 Hugo Chávez demitiu 13 altos executivos da estatal em regime de greve, antes de anunciar a aposentadoria de 12 gerentes da empresa.

Três dias depois daquele domingo, a multidão comemora a nova palavra de ordem como se fosse um homerun, um gol. Sucedem-se os oradores:

-...e nós vamos a Miraflores pedir-lhe que se vá - adianta Pedro Carmona Estanga, o presidente da Fedecâmaras.

... caudaloso como o nosso Rio Orinoco, vamos a Miraflores, este rio humano marcha até Miraflores, contundentemente, para derrubar o traidor do povo venezuelano. Adiante então para Miraflores, para Miraflores, daqui nos vamos a Miraflores até que ele se vá - acelera Carlos Ortega, presidente da Confederação de Trabalhadores.

Enrique Mendoza, governador de Miranda, um dos estados por onde a capital se espalha, adversário figadal de Chávez, de cima do palanque conclama a multidão, também com gestos:

-Vamos a Miraflores, vamos a Miraflores...

José Vicente Rangel, ministro da Defesa, está em sua sala, no ministério da Defesa, no Forte Tiuna, reunido com o Alto Comando. Assiste à cena pela televisão, não se contém na cadeira. Levanta-se, aproxima-se, vocifera diante da tela, assistido por generais e almirantes:

-Isso é uma loucura, uma loucura, vai haver um choque...

Rangel não esconde a angústia, o desespero. Na noite anterior, ele e o vice-presidente Diosdado Cabello tentaram convencer donos das emissoras de televisão a baixar o tom. Em vão.

O ministro da Defesa, agora, liga primeiro para Victor Ferrer, do canal 4. Pede, quase roga, com as mesmas palavras que repetirá nos minutos seguintes a Alberto Federico Ravel, da Globovisión, e a Marcel Granier, da RCTV:

-Vocês têm autoridade, podem influir sobre as pessoas que lideram a marcha... podem de alguma maneira influenciar para que as pessoas que estão no palanque, no mesmo palanque onde estão os meios de comunicação, não sigam convocando a marcha para Miraflores...

-Vamos ver... vamos tentar... não sei se podemos tanto...- as evasivas para o ministro da Defesa seguem o mesmo padrão.

O ministro deixa claro que sabe, como sabem todos eles, o que se avizinha:

-Se a marcha seguir para Miraflores vai se produzir uma situação extremamente delicada...

Inspetor geral das Forças Armadas, o general Lucas Rincón Romero está na sala do ministro da Defesa. Percebe que Rangel fracassou na tentativa junto aos donos de emissoras de televisão. Afasta-se a um canto e liga para o presidente da República:

-Olha presidente, vou tentar ver se essa gente entende que a Marcha não pode ir para Miraflores...

-Certo, certo Rincón, faça isso mesmo...

-...vamos ver se eles entendem, isso vai ser um choque de trens, isso vai ser sangrento...

O general Rincón disca, em seguida, para Carlos Ortega, presidente da Confederação dos Trabalhadores da Venezuela, a CTV, cabeça da conclamação à greve geral:

- ...Ortega, não façam isso. Chavistas estão em frente ao Miraflores, vai ser um choque terrível entre dois bandos, isso vai acabar em sangue...

-General, hoje o senhor pode entrar para a história...

-Como? O que você quer dizer, Ortega?

- Prenda o presidente, Lucas Rincón, e você passa para a história.

O general Lucas Rincón desliga.

FIDEL E FERNANDO HENRIQUE

O golpe se completou na madrugada seguinte. Às quatro horas, já com mais de 30 mortos nas ruas de Caracas - a maioria deles atingidos na cabeça, por franco-atiradores -, Hugo Chávez entregou-se em Forte Tiuna.

Depois de ouvir conselhos de Fidel Castro. E de Fernando Henrique Cardoso, então presidente do Brasil.

Estes, como dito logo no começo dessa narrativa, são trechos esparsos de informações que estarão em um livro - ainda em construção - e da reconstituição de um golpe e do contragolpe. Ao centro o personagem que tantos na Venezuela, no Brasil, na América Latina e mundo afora amam, ou amam odiar: Hugo Rafael Chávez Frias.

Letras à parte, há as imagens e depoimentos. Dois preciosos flagrantes estão aqui, linkados a essa narrativa.

Para que se compreenda melhor estes dois vídeos.

O primeiro vídeo é parte do filme de Kim e Donnacha, A revolução não será televisionada. Nestes frames, aqui publicados sob o título A Notícia e a Farsa, a breve história de uma farsa jornalística -matéria daquele dia de uma emissora privada sobre o tiroteio, que foi premiada mundo afora, registre-se.

As cenas mostram chavistas atirando por sobre a murada de uma ponte, a Llaguno. Cenas que correram o mundo naqueles dias de Abril: "Chavistas atiram na multidão", como disseram nos telejornais os locutores das emissoras privadas - inclusive a RCTV, agora tão pranteada.

Na sequência da mesma cena, a farsa é desmontada pelos documentaristas Kim e Donnacha com um depoimento e uma imagem.

O depoimento é de Andrés Izarra, então chefe de produção de uma das emissoras privadas - hoje presidente da TV estatal TELESUR.

Izarra contou, à época, que imagens foram omitidas e que assim todos os telespectadores, inclusive nas redações, o que viram foi dois atiradores a disparar "contra a multidão", como repetiam os locutores.

A força da imagem é tamanha que ninguém notou que chavistas - assim como a multidão posta sobre a ponte Llaguno - atiram e imediatamente se deitam; se deitam para escapar às balas disparadas de outro lado. Por franco atiradores. Não havia multidão alguma, nem mesmo um grupo de pessoas, na avenida abaixo da Ponte Llaguno. Uma imagem derrubaria a farsa de vez.

A imagem foi feita pela câmera de Kim e Donnacha. A câmera se move lentamente, indo dos atiradores ao vazio na avenida abaixo, onde deveriam estar - de acordo com as imagens e locução que correram o mundo - "a multidão abatida a tiros pelos chavistas".

Em tempo: a RCTV e demais emissoras venezuelanas divulgaram a mesma imagem editada, e versão. E, assim como a televisão brasileira aberta - inclua-se aí o Jornal Nacional e telejornais vários que há um mês tratam do assunto -, as emissoras venezuelanas não divulgaram os distintos olhares e percepções sobre estas dramáticas horas.

Olhares e percepções distintos que recontam a história com outros fatos e nuanças, que desmanchariam a canhestra tentativa de se erguer bandidos e heróis a golpes de lente e locução.

O segundo vídeo chama-se A Mídia Confessa.

PARABÉNS RCTV...

Vídeo também extraído do documentário de Kim e Donnacha. Instante fundamental para quem hoje, daqui a um, dez, cem anos, quiser entender o papel e o poder de meios eletrônicos de massa no final do século XX, início do século XXI.

O canal do programa de televisão é o Venevisión, do milionário Gustavo Cisneros. O programa é o 24 horas. O locutor é Napoleón Bravo, profissional de tanto destaque profissional e fulgor quanto, por exemplo, William Bonner no Brasil.

A narradora diz tudo, antecipa e pontua as frases ditas pelos convidados de Napoleón enquanto o programa se desenrola.

São seis da manhã do dia 12 de Abril. O golpe acabou de acontecer. Chávez está preso há duas horas. Napoleón e os seus convidados comemoram. E se excedem. Emprestam à história um testemunho excepcional - neste vídeo, apenas um trecho do original.

Frase excepcional, e terrível, dita em relação ao Brasil e a Lula, ali não está gravada.

(Estará no livro que espero acabar; há que guardar preciosidades)

O militar de branco é o Almirante Carlos Molina Tamayo, um dos comandantes do golpe e feito Chefe da Casa Militar, horas depois, pelo presidente autonomeado, Pedro Carmona Estanga.

Napoleón é o senhor de terno cinza, cabelos grisalhos, sorridente. Notem que ele e o cidadão calvo, de óculos, revelam:

- O general Gonzáles gravou aquela entrevista na casa de Napoleón....

Napoleón, o Bravo, confirma com um sorriso.

Na dita entrevista, gravada e exibida três dias antes do golpe, o calvíssimo general González, apoplético, como se vê claramente, agride verbalmente o presidente da República e prega abertamente o golpe.

Nas cenas seguintes do vídeo outros militares, nas democráticas telas das emissoras privadas, conclamam militares a depor o presidente eleito.

Momento, o seguinte, a ser congelado e exibido para que se compreenda o que se passa hoje na Venezuela, para que se chegue à gênese do embate "governo Chávez x RCTV". Molina Tamayo descreve as etapas do golpe:

- ... teve apoio massivo da sociedade civil e quando chegou ao ponto máximo desse apoio, passaram a contar com as Forças Armadas...

No vídeo não consta, mas a história guardou e exibirá ponto crucial do discurso de Molina Tamayo:

- ... o envolvimento e apoio dos meios de comunicação...

Napoleón e os convivas congratulam-se, e entregam tudo:

- Temos um novo presidente. (...) E devemos dizer obrigado à Venevisión (de Cisneros) (...) Temos que dizer tanto da Venevisión como obrigado à Globovisión (de Alberto Ravel), obrigado à RCTV (de Marcel Granier). Obrigado aos meios de comunicação...

São os fatos. E nem todo o alardeado autoritarismo, nem erros que Chávez cometeu ou venha a cometer, servem, poderiam servir por outro lado, para justificar e esconder o erro brutal, definitivo, cometido pela mídia venezuelana.

Nada explica, ou tudo explica, porque a tal mídia, lá como cá, não explica a si mesma. Porque não revela como se portam, se portaram sempre diante de seus interesses e adversários, os que agora bradam por democracia - no caso dos protestos brasileiros, protestos por democracia nas relações Estado & Mídia, desde que na Mídia e Estado do vizinho.

O levante jornalístico de agora, ainda que democrático e em nome de mais democracia, mesmo que sincero, bem intencionado e nascido de real temor a Chávez, não tem como esconder uma de suas motivações e intenções: é uma vacina.

Vacina preventiva. Para que nada nem ninguém pense, ouse, discutir para valer no Brasil a posse e o uso democrático de meios de comunicação de massa.


Assistam abaixo, trecho de "A Revolução não será televisionada", onde se mostra o envolvimento da imprensa privada  venezuelana com o golpe de 2002:




Original aqui

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