quinta-feira, 4 de março de 2010

"Queremos mudanças que possamos tocar com as mãos"



José "Pepe" Mujica anunciou “uma reforma do Estado profunda, mas feita com diálogo, sem pisotear os trabalhadores e os sindicatos”. Além disso, comprometeu-se em manter o Plano Ceibal, de educação e inclusão digital, e o Plano de Emergência, para superar por completo a miséria, o que significa retirar do estado de desamparo profundo cerca de 80 mil pessoas e aumentar a renda de outras 350 mil. O novo presidente destacou ainda a necessidade de firmar o Uruguai como um país agrointeligente, e não apenas agroexportador. O artigo é de Clarissa Pont e as fotos são de Eduardo Seidl.
 
Clarissa Pont
 
A capital uruguaia amanheceu neste 1º de março com as calçadas tomadas por bandeiras da Frente Ampla. Famílias inteiras, munidas de mate e galletitas, esperavam desde cedo sob o monumento ao General José Artigas, na Praça Independência, para o momento da chegada de Pepe Mujica ao local. Após realizar o juramento à Constituição no Palácio Legislativo, bastante emocionado ao lado da companheira e presidente do Senado Lucía Topolanski, Pepe seguiu pela Avenida Libertador ao lado do vice-presidente eleito Danilo Astori em uma caminhonete chinesa convertida para rodar com eletricidade por trabalhadores uruguaios. As últimas quadras até o palco montado para recebê-los foram percorridas a pé. Ali, o novo presidente realizou um segundo discurso. "Queremos mudanças que possamos tocar com as mãos", resumiu Pepe, cercado de estadistas de países vizinhos.


O novo presidente do Uruguai acordou cedo, leu os jornais, escutou rádio e afirmou que passou os últimos dias “tranqüilo e bebendo mate” em sua chácara no Rincón del Cerro. O ex-guerilheiro tupamaro de 74 anos deixou o local, cercado por jornalistas, para cumprir agenda de reuniões com o mandatário da Colômbia, Álvaro Uribe, e com a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton. Hillary elogiou o encontro. "Os uruguaios estão orgulhosos de seu novo presidente e da democracia", disse. "O Uruguai é um modelo para muitos outros países, não só no nosso hemisfério, mas em todo o mundo", acrescentou. De fato, os uruguaios dedicaram o dia para celebrar a vitória do segundo presidente de esquerda da história.


As bandeiras da Frente Ampla fazem parte da paisagem do país, mas nada como o visto nesta semana que precedeu a cerimônia de posse. Bicicletas, outra marca registrada do país, circulavam pelo Centro em vermelho, azul e branco, assim como vendedores, pais e crianças. Raquel e Cláudia Moreno, respectivamente mãe e filha, formavam o grupo reunido desde cedo ao redor do palco montado na Praça Independência. Vieram da província de San Carlos para participar da posse porque “quem militou desde muito jovem na Frente Ampla merece o cargo presidencial. O Pepe pensará mais no povo, apesar de seguir as linhas centrais do governo de Tabaré Vazquéz”, afirmou a filha, educadora pré-escolar. Para a mãe, aposentada, o motivo mistura momento histórico e vida pessoal. “Somos Frente Ampla desde seu nascimento e, mesmo antes, já buscávamos a criação deste partido. Para mim, o mais importante é deixar de alentar tanto o fato do Pepe ter sido um tupamaro e enxergar as políticas sociais deste novo governo. Posso dizer que já chorei muito e vou chorar mais um tanto na posse porque estou revivendo a minha história com muita alegria”, compartilhou.


A cerimônia de posse, realizada em duas etapas, demarcou facetas de Mujica. Primeiro, vestindo terno sem gravata, o novo presidente realizou um discurso protocolar no qual elencou os principais pontos do plano de governo da Frente Ampla para os próximos quatro anos. No Palácio Legislativo, o novo presidente pediu tolerância e colaboração à oposição e prometeu uma política econômica "ortodoxa" na mesma linha que a do governo anterior da Frente Ampla. O momento mais emocionante da cerimônia foi, sem dúvida, quando abraçou e beijou a companheira Lucía Topolanski e pediu licença aos presentes para chamá-la de “minha querida Lucía”, ao invés de “senhora presidente da Assembléia Nacional”.


“Gracias a todos vocês que nos acompanham desde o campo, as cidades, do interior de duas casas. Falta-me conhecimento jurídico para saber quando deixo de ser presidente eleito para me tornar presidente de fato. Não sei se é agora ou se é daqui a pouco, quando recebo o cargo de meu antecessor. Da minha parte, desejo que a palavra ‘eleito’ não desapareça da minha vida, para que eu tenha a virtude de me recordar a cada minuto de que sou presidente a partir da vontade do povo. Fui eleito para que não me distraia”, disse Mujica ao príncipe Felipe de Espanha, aos presidentes Hugo Chávez (Venezuela), Cristina Kirchner (Argentina), Evo Morales (Bolívia), Fernando Lugo (Paraguai), Alvaro Colom (Guatemala) e Rafael Correa (Equador), obrigado a movimentar-se em cadeira de rodas depois de uma cirurgia no joelho provocada por uma “partida de futebol”, como afirmou aos jornalistas no local. O presidente Lula, que também participou da cerimônia, concordou com a cabeça e fechou os olhos ao escutar Mujica afirmar que “governar é mais difícil que pensávamos”.


O novo presidente traçou no discurso o início de um túnel de três décadas na história do Uruguai. “Hoje é o dia um do governo, com céu aberto, amanhã começam os raios. Para mim, governar é começar a criar as condições políticas para governar. Parece até um trava-língua, mas repetirei sempre essa frase. Vamos governar para gerar transformações a longo prazo, criar condições de governar políticas de Estado para os próximos 30 anos. Não em um governo meu, nem necessariamente da Frente Ampla, mas de um sistema de partidos tão sério e potente que poderá gerar distintas presidências que passarão por este túnel com as linhas estratégicas do país intocadas”, conclamou.


Em linhas gerais, Mujica anunciou “uma reforma do Estado profunda, mas feita com diálogo, sem pisotear os trabalhadores e os sindicatos”. O Uruguai soma mais de 230 mil servidores públicos. Além disso, comprometeu-se em manter o Plano Ceibal, de educação e inclusão digital, e o Plano de Emergência, para superar por completo a miséria, o que significa retirar do estado de desamparo profundo cerca de 80 mil pessoas e aumentar a renda de outras 350 mil. Mujica grifou a necessidade de firmar o Uruguai como um país agrointeligente, e não apenas agroexportador. A meta principal é agregar valor às práticas agropecuárias locais. Outros temas caros ao plano de governo da Frente Ampla são as energias renováveis e uma nova lei de telecomunicações, esta dentro do Plano Cardales, que engloba a mudança de tecnologia para a TV digital e a concessão de novas freqüências de rádio e TV.


Após o ato no Palácio Legislativo, Mujica e o vice rumaram à Praça Independência num pequeno carro chinês adaptado a motor elétrico com mão de obra uruguaia. Percorreram as últimas quadras a pé, pela Avenida 18 de Julho, onde milhares de pessoas acompanhavam o trajeto aos gritos de “Uruguai, Uruguai”. No palco, o presidente realizou um segundo discurso, desta vez bastante popular. “Querido povo, é com vocês que está todo o compromisso. O bom da vida é saber que ninguém é mais que ninguém e que governar é constituir um time”, disse. Também reservou alguns minutos para saldar “alguém muito especial, um velho amigo de Artigas, criado na fronteira, órfão de guri, com mais de 40 anos de militância, sempre abaixo. Ele está aqui comigo hoje para recordar que estar acima é um compromisso com os que estão abaixo. Temos que lutar todos, por todos”, concluiu o novo presidente uruguaio. Ainda durante a noite, desde a Praça Independência até a Praça Cagancha, e por todas as ruas perpendiculares do centro de Montevidéu, a festa seguiu com shows musicais e milhares de pessoas que acompanharam a cerimônia em telões espalhados pela cidade.

Publicado na Agência Carta Maior 

Nenhum comentário:

Postar um comentário