Trinta anos após a vitória da revolução na Nicarágua, combatentes da época buscam resgatar os valores sandinistas
Arturo Hartmann
“19 de julho na Nicarágua é… Nunca mais ditaduras! Este ano é data de comemorarmos os 30 anos do triunfo revolucionário na Nicarágua. (...) A partir do RESGATE do sandinismo, queremos que esta data não seja apenas para comemorar o gesto de nosso heróico povo, e sim também para ratificar nosso compromisso – como sandinistas – da luta popular organizada, da resistência, da construção valente de uma sociedade superior, a partir dos valores e princípios que nos deram como herança Carlos Fonseca Amador, Augusto Nicolás Sandino, Arlen Siu, Luisa Amanda Espinoza, Germán Pomares e todos nossos heróis mártires caídos”.A autora das linhas acima, Mónica Augusta, é filha de Mónica Baltodano, revolucionária de 1979 e hoje deputada da Assembleia Legislativa da Nicarágua. Ela conclui assim: “acreditamos firmemente que essa tradição germinou em nossas terras e que não haverá caudilhismo, pactos ou tergiversações que possam arrancá-la de nosso povo”. Talvez refira-se à eleição de Daniel Ortega, nome que já consta em livros de história, à presidência de seu país, em 2006. Seus significados podem ser muitos, dependendo de quem constrói o discurso e reconstrói a história. O antigo líder da revolução de 1979 e presidente em grande parte dos 11 anos durante os quais, oficialmente, a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) comandou o país, voltou numa versão light, para não pegar pesado como seus maiores críticos. “Falso sandinismo”Em 19 de julho, na cerimônia oficial do 30º aniversário da revolução que seria retratada por Cortázar (em seu Nicarágua Tão violentamente Doce) e ganharia sua referência pop com The Clash (em seu álbum “Sandinista!”), nenhum de seus antigos companheiros posaria a seu lado. Em outubro de 2006, um mês antes das eleições, o poeta Ernesto Cardenal, um dos que marchou pela revolução, escreveu o artigo “Sandinistas: não votem a favor do falso sandinismo”. Procurar um significado para o sandinismo hoje é difícil, mas ganhamos uma explicação satisfatória nas palavras de Dora María Téllez, uma das mais destacadas participantes daquele 1979. Ela deixou as fileiras da FSLN e hoje faz parte do Movimento Renovador Sandinista (MRS). Foi uma resposta daqueles que se opuseram à guinada que Daniel Ortega deu à direita do espectro político, o que incluiu, entre outras coisas, aliar-se com Arnoldo Alemán, presidente entre 1997 e 2002 que chegou a ser condenado por 20 anos de prisão, por lavagem de dinheiro e ativos provenientes de atividades ilícitas, fraude, peculato, malversação de fundos públicos, delito eleitoral e instigação para delinquir em prejuízo do Estado da Nicarágua. “O sandinismo é um movimento político amplo, com o qual nos identificamos todos. Já o orteguismo é uma facção que se apropriou da estrutura da Frente [e a direcionou] para os interesses do aparato de poder de Daniel Ortega. Não tem um programa, apenas um único fim: mantê-lo no poder”. Dora afirma que as políticas deste ano e meio de governo Ortega não diferem em nada do que faziam seus antecessores pós-revolução. Entre outras coisas, ele teria submetido os sindicatos, colocando-os à ordem dos, diz ela, “grandes empresários”, que, por sua vez, submeteram os trabalhadores a seus próprios interesses. Democracia No atual contexto, enxergar o legado da Revolução Sandinista na sociedade nicaraguense é uma tarefa árdua. Hoje, é um país pobre, o 110º no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU de 2008, atrás de El Salvador (103º), Belize (80º), República Dominica (79º) e Costa Rica (48º), para citar alguns de seus vizinhos. A convulsionada Honduras está em 115º. Dora pode falar de dentro. Para ela, a Nicarágua atual é produto dessa revolução, já que foram enxertados na sociedade do país um senso de democracia e de justiça social jamais visto, além de criar instituições duradouras, mudando o exército, a polícia, a propriedade da terra rural e as políticas sociais. “A revolução afetou as instituições, como a polícia, que agora tem um caráter nacional e não-golpista, e que não se mete nas questões políticas. Inaugurou também uma agenda e uma plataforma onde fermentaram os direitos humanos, o que não existia. Também assistimos a um processo de organização social amplíssimo na sociedade nicaraguense, de gestão com participação pública”. Já a professora Elizabeth Dore, da Universidade de Southamptom, Inglaterra, pode falar de fora. Ela dedicou grande parte de seus estudos à Nicarágua e é autora de “Myths of Modernity: Peonage and Patriarchy in Nicaragua”. Dore, que teve grande contato com populações camponesas do país, diz que a atitude frente às conquistas da revolução chegam a ser cínicas. Ela faz questão, antes de dar a resposta, de deixar claro que respeita e tem profunda admiração por Dora Téllez, mas prepara o terreno para uma outra visão. “No campo, talvez poderia esperar-se que houvesse organizações de base preocupadas com as demandas locais, mas não vi isso. Minha visão é a de que a revolução não deixou um legado progressista. Líderes camponeses e intelectuais orgânicos com os quais tive contato têm uma atitude até mesmo cínica. Dizem que deram a vida por uma mudança, mas, mesmo após a derrubada de Somoza [Anastasio Somoza, ditador derrubado pela revolução], permaneceram em luta pela distribuição de terras e veem que muito pouco foi conquistado”. (Leia mais na edição 334 do Brasil de Fato).
O ministério da saúde adverte, ler Brasil de Fato deixa o leitor alienado. O sandinismo autêntico era tão popular, mas tão popular que na primeira eleição direta, perdeu para para a conservadora Violeta Chamorro. Diversos governos se sucederam e em 2006 o agora moderado Daniel Ortega conquistou novamente o poder, pelo voto da maioria do povo. E os intelectuais orgânicos do atraso fazem teorias e teorias sobre o óbvio.
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